Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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ESCUDO PROVISÓRIO

José morreu quando seu corpo foi usado como escudo pela quadrilha que assaltou o banco.

Uma bala certeira acertou a cor alvo que nunca estará a salvo. Naquele dia não restou inocente para contar a outra versão dos fatos.

 

Mas José já tinha morrido antes.

 

Com pouco mais de um ano levou um tapa do pai que tentava ferir a mãe que o usou como escudo. Diante dos gritos dela ele nunca entendeu quem de fato sofreu.

 

Aos três anos José também morreu em meio a uma briga por ciúmes. A amante do pai cravou as unhas em sua pele enquanto a mãe se defendia e atacava.

 

Aos sete anos aconteceu de novo. A mãe o agarrou sobre si enquanto se desvencilhava do policial que a revistava. Ficou em seu peito a marca do cacetete que à sua mãe imobilizou.

 

Ao longo da vida José parecia estar sendo treinado para morrer daquele jeito. Talvez por isso tenha se deixado levar tão docilmente pelos bandidos, que não viram que ele era um igual na cor e no valor.

 

Aos dez anos José servia de escudo quando a mãe mendigava pelas ruas e lhe jogavam na cara cerveja, xixi e gasolina. As queimaduras nas costas lembravam-no o dia em que chegou antes do fogo.

 

A última vez que José serviu de escudo foi aos dezesseis, pouco antes da mãe morrer. No dia em que ela foi pegar a transferência dele, um ótimo estudante por sinal.

Expulso por reagir ao racismo que sofria. A mãe quis bater no diretor que revidou.

 

José foi filho sem nunca ter sido desejado ou escolhido. Uma piada de mau gosto, fruto do sexo casual ou de um estupro. Nunca houve planos de futuro. "O que você quer ser quando crescer?" Se pudesse diria: um ser humano vivo. Mas nunca lhe perguntaram. O futuro só era algo bem presente na hora em que pensava no almoço.

 

 

Mas depois do incidente houve alguém que ligou para o jornal e narrou a vida do rapaz. E na televisão mostraram José se dando em sacrifício. Na favela onde morava todos assistiram também. Talvez por isso junto à lápide alguém pousou um escudo sobre o caixão. Vai em paz, José, a sua vida não foi em vão.

 

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 16/06/2025
Alterado em 17/06/2025
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