Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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Os dedos sintonizaram o radinho. De lá saía um ruído antigo, que lembrava uma mistura de música e prosa. Levava  nos ouvidos um tampão antirruídos com o qual costumava dormir e, no dia seguinte, permanecia com ele até o horário do almoço. Era o que estava fazendo agora. O almoço. Mas continuava sem ouvir nada porque intencionalmente esquecera de destapar os ouvidos. Era uma tapada. Imaginava. Tirava da geladeira um punhado de coisa fresca e ia enfileirando sobre a pia: cenouras, vagens, quiabo, tomate, sementes de abóbora, algumas batatas miúdas. Organizava a sua coleção por tamanho e cor. Ligava a torneira e imaginava o som límpido como um riachinho correndo vagaroso. Pensava no tempo, em como o tempo pode ser esquisito. Lembrou-se de Santo Agostinho “Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é o tempo, mas se me perguntam o que é o tempo, eu não sei o que é o tempo.” Quanto tempo havia passado desde a última vez em que estivera com alguém a conversar? Um mês? Talvez.  Quanto tempo não ouvia a voz de alguém familiar? Quanto tempo estava ali diante da pia acariciando sua comida como estivesse convencendo a vítima a se entregar sem resistência. O tempo Chronos na parede tiquetaqueando alertava que já se havia passado uma hora desde que entrara na cozinha. Uma hora. Uma hora que seu corpo estivera ali, fincado naquele assoalho. Mas no tempo kairós seu eu teria estado ausente por muito mais que uma hora. Lavou as mãos de maneira delicada: mãos negras, palmas brancas. Sorriu porque lhe veio à mente o comentário de um amor do passado sobre as suas queixas da escola “talvez seja um estudo muito elevado para você”. Em outras palavras, ele a chamara de burra com a carinha mais amorosa do mundo. Lembrou-se de ter rido como ria agora. Olhou para o dedo anelar e ficou se perguntando por que não se casara. Era tão formosa, maternal e um tantinho submissa — porque, convenhamos, deixar um namoradinho qualquer lhe chamar de burra na sua cara e, ainda sorrir, é mesmo o papel de uma tola. Ah, tudo bem, estava apaixonada por aquele gorduchinho. Por onde andaria agora o João Vicente que era, de fato, o burro do casal? Só o tempo diria. Não o procuraria, pois há tempo para tudo. Cada coisa a seu tempo. Quando dizia “a seu tempo”, tinha um Alceu no meio. E ele riria desse trocadilho infame. Riria, não rirá, pois está morto. Será que o plano de saúde deu-lhe cobertura quando do falecimento? Ele vivia dizendo que precisava morrer aos setenta anos porque depois não teria mais a assistência  médica. A panela de pressão chiava. Via-se pelo movimento da vávula de segurança soltando uma fumacinha rancheira. Olha só: Pá, nela, depressão! Ô doencinha que abala a gente! O corpo chia na menopausa. E borbulha. Esquenta e esfria.  Esfria e esquenta. Sexo é uma coisa esquisita demais. Meu Deus, como é que cheguei nessa saliência? Creioemdeuspai!

 

 

Adelaide Paula

@adelaidepaulaafrofuturista

@nepfir_unb

Doutoranda em Afrofuturismo

Professora de Literatura/Escrita Criativa

Escritora/ilustradora - autora de quatro livros

Finalista do prêmio Maria Firmina dos Reis com o romance Mãe – o silêncio atrás da porta

Cofundadora do núcleo de escritoras pretas, @NPFIR_UNB

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 05/10/2023
Alterado em 05/10/2023
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