Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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        Ela adentrou a casa sacudindo um folheto de ofertas como se estivesse tomada pelo calor. O desalinho dos cabelos reforçavam o atropelo das horas. A rotina, dividida entre as aulas na universidade e o cuidado com as crianças, não lhe dava muito tempo para estar como talvez desejasse, por isso ele não estranhou quando, naquele dia, ela avançou pelo escritório, correndo atrás do filho mais novo, que queria entregar um desenho ao pai. Enquanto segurava a folha coberta de garatujas, os olhos do marido encontravam os da esposa no meio do caminho. A voz dela vinha à frente interrompendo o silêncio que se interpunha entre eles. O som metálico misturado com doçura feito aquelas sobremesas que passaram do ponto. O jeito de falar “Não tá lindo o desenho dele, papai”, alongando um pouco mais a última palavra da frase, exaltando a paternidade, era um jeito de reinventar a afetividade depois da crise no casamento. Uma traição dela, que ele nunca confirmou, mas que suspeitou, pôs fim ao romantismo que havia entre eles. O fato é que o relacionamento estava, agora, respirando com ajuda de aparelhos e o desejo de terminar aquela história era algo que não saía da cabeça do marido. Mas a pouca idade das crianças e o desespero dela com a possibilidade de perder as comodidades da vida matrimonial o fez dar um passo atrás, que logo se tornou uma meia volta, quando o incidente na escola do filho mais novo trouxe vulnerabilidade para a família.
        A morte de um coleguinha nublou o tempo de toda a comunidade. Por isso, não parecia conveniente que adultos começassem a tomar decisões ao casuísmo, desfazendo laços, a ponto de enlutar ainda mais as mentes infantis. Assim, ele acordou com ela, que eles ficariam em casa e, juntos, dariam continuidade ao casamento sob nova ordem. Isso incluiria mais momentos em família e, menos viagens à trabalho, em finais de semanas prolongados, como as que ela vinha fazendo havia seis meses. Ela, concordou, interrompendo pesquisas, que saíam da rubrica de “urgência” para “com tempo”. Foi nesse mesmo período que o filho mais novo começou a desenhar uma figura humana em todas as suas criações artísticas. Não demorou para que os professores associassem a imagem ao garotinho falecido. As atenções se voltavam para o menino, cujos pais temiam a possibilidade de que aquela alma ainda estivesse vagando por ali, junto ao seu filho. Ambos tinham a mesma idade e se sentavam lado a lado desde o jardim de infância. Essa proximidade em vida teria criado uma ligação na morte? ¬- Eles se questionavam. Por isso, sempre que o menino começava a desenhar, a atenção tomava conta dos pais, que não interpelavam o filho, que carregava o silêncio entre os lábios. Eles se restringiam a elogiá-lo, na esperança de que aquela figura inominada desaparecesse como a psicóloga havia afirmado. No entanto, mesmo passado um ano desde o primeiro desenho, a figura continuava presente.
        O problema do filho tomou toda a atenção do pai que, agora, ficava horas em frente ao computador em busca de relatos semelhantes: manifestações espirituais por meio de desenhos infantis. Ia abrindo links e hiperlinks, penetrando em um universo subjetivo, muito diferente das investigações técnicas que costumava fazer. Sua curiosidade se expandia ao passo que colecionava em um caderno, estilo journal bullet, as produções do filho, catalogando-as com datas e observações, como, por exemplo, o uso das cores e o traço do desenho. Nesses aspectos, o garoto demonstrava vir evoluindo de maneira admirável, utilizando colorações com harmonia, preenchendo os espaços e fazendo contornos. Tudo levava a crer que crescia de maneira saudável, excetuando-se a presença da imagem humana sempre atrás de uma árvore. O pai passou a fazer registros fotográficos do desenho, dando zoom nos detalhes, traçando um perfil da figura, buscando semelhanças entre o filho, o inominável, o amiguinho falecido e outras tantas personalidades importantes em sua vida de criança. A busca por respostas levava o pai a remexer no arquivo da memória, vasculhando as lembranças, em busca de algum traço doentio em sua parentela. Temia que o filho estivesse desenvolvendo alguma patologia psíquica como tio-avô, que foi tomado pela esquizofrenia na adolescência. Também buscava na família da esposa histórias desse tipo e, assim, foram surgindo relatos de depressão, ansiedade, toques e tiques. A própria mulher era uma mistura de sintomas que só agora ele percebera. O saltito no caminhar era a véspera de uma corrida. O olhar de susto, percorrendo os espaços, buscando algo ou alguém. O tremor no canto da boca, cuja perfeição do sorriso ao ser interpelada, oferecia respostas para todas as perguntas. O modo de frisar nas conversas que continuava casada. Bem-casada. Aquela descrição fê-lo chorar. Talvez ele estivesse impondo uma pressão maior que as forças dela conseguiam suportar. Sentiu-se um crápula. Mudaria, decidiu-se.
Tempos depois, o traço do inominado nos desenhos do menino tornou-se superado. Transformara-se em uma marca daquele que seria um grande artista - era o que todos diziam. Nas oficinas terapêuticas falava-se na obsessão de artistas por determinadas imagens. Yayoi Kusama e suas bolinhas, a autoimagem nas produções de Frida Khalo, os girassóis de Van Gogh, Siron Franco e suas antas. Era sobre isso que conversavam, durante uma festa, numa roda de amigos. O tema girava em torno dos desenhos do menino, que agora enfeitavam uma das paredes do escritório. O garoto refestelado na poltrona do patriarca estava a terminar uma obra recente e parecia vaidoso por ser o centro das atenções. Foi nesse contexto, que uma das convidadas perguntou aos pais o que o menino dizia estar desenhado ali. O pai respondeu qualquer coisa e a mãe deu de ombros sem saber o que dizer. A mulher, então, lembrou o desenho do pequeno príncipe, que mostrava uma jiboia engolindo um elefante, onde as pessoas só viam um chapéu.
A senhora, então, aproximou-se do menino, que seguia desenhando, e passou a fazer perguntas sobre a textura da folha, sobre os lápis e as tintas, sobre a escola e a rotina de criança. A rouquidão de sua voz tinha um-não-sei-o-quê de sonolência, que parecia hipnotizar quem estava ouvindo. Algumas pessoas voltaram para a sala, deixando apenas um grupo a contemplar a cena, entre eles, os pais. Depois de explorar cada elemento na pintura e compará-lo aos desenhos que ornamentavam a parede, o seu dedo indicador tocou o inominável. A mão cheia de veias, cobertas de manchas, davam pistas de sua idade. A unha terminava em ponta, cujo ângulo demarcava como seta a figura humana no desenho. A criança parecia obedecer aos comandos escondidos nas palavras, que saiam como que sopradas da boca da mulher. O silêncio ocupou a sala quando ela insistiu na pergunta: “E este quem é?” O menino olhou para a mulher e depois para os pais e disse num suspiro: “ É o amigo da mamãe”
Adelaide Paula
Outubro, 2021
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 02/10/2021
Alterado em 04/10/2021
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