CRIME E CASTIGO
Abriu uma garrafa de vinho e serviu a si mesma uma taça. Depois outra. E outra, logo em seguida. Por fim, virou na boca o gargalo do rubro liquor. Suas mãos tremiam intermitentemente e sentia-se gélida. Sob a mesa, no chão, aos seus pés, o cadáver do padrasto. Era século XIII e a Santa Inquisição caçava bruxas para queimar. Quem acreditaria que fora vítima de abusos sexuais desde pequena? Nem mesmo à mãe ousava contar. Depois da segunda garrafa, viu seu sangue fervilhar e tomada pela urgência da questão, deu termo ao defunto. Tal qual fazia no trabalho do dia a dia, separou junta por junta e o esqueleto descarnou. Na fornalha que ardia, dente, unha, pele e cabelo queimou. Seu oficio de açougueira encontrou agora a serventia; sabia cortar, talhar, queimar. Durante toda a noite, a fornalha ardeu. Sem cessar. Lavou o chão com vigor, deixando tudo asseado. O sangue desapareceu junto com o rescaldo do rescaldo. Numa caçarola gigante, depôs os ossos lado a lado - nunca vira em tão boa forma aquele homem desalmado. Lançou sobre ele um saco de cal e muito ácido, fez uma sopa e deixou cozinhar. Viu um monte virar um bocado e depois um fiapo e, por fim, uma lama só. Eis que o homem encontrara a sua essência. Em algumas horas, o dia raiando, começaria o movimento no castelo e, logo viriam as perguntas sobre o paradeiro do padrasto.
Despejou a lama do monstro sobre a lama dos porcos e o cheiro ruim ao mais ruim se juntou. A podridão dos costumes à podridão dos dejetos se fundiu. Separou os assados, a carne que salgou, o guisado e o bacon bem cortado. Guardou o banquete bem guardado. Os próximos dias seriam de fartura. Dias de busca se sucederam e, como era de esperar, os santos homens vieram perscrutar se naquelas cercanias alguma bruxa viera parar. Foram recebidos com pompa e circunstância. Logo cedo, no desjejum provararam dos pães, ovos e bacon. Se deliciaram com a finesse da gordura defumada. Decidiram ficar para a refeição principal enquanto interrogavam um a um os serviçais do lugar. A pausa para o almoço foi um deleite só. Carne macia, adocicada, extremamente perfumada, de saborosa gordura entremeada. Os Santos da Inquisição pareciam esfomeados, devorando cada pedaço, esvaziando travessas, lambendo os beiços do resto. A entrevista da tarde só começou depois da sesta. Mas, a mente de cada entrevistador só pensava no lanche vespertino. De tão distraídos, nem perceberam que ela toda se tremia ao responder as perguntas. À noitinha, finda as pesquisas, decretaram em uníssono a pureza daquele lugar. Agradeceram a hospitalidade, o gosto em receber. Saíram sorrindo, cada qual levando debaixo do braço, um bocado, um pedaço do indigesto pecado.
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Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 11/05/2018
Alterado em 11/05/2018