QUASE LIVRO, FILME OU TELA.
De repente, eu vivia em Burnaby, bairro classe média alta de Vancouver, com suas casas de madeira em estilo clássico, de portas coloridas e escadinha na frente. Morava no número oitenta e três. O clima frio e chuvoso me colocava dentro da atmosfera de filme e durante toda a minha estada no Canadá foi o que senti. Cada momento do dia, me lembrava uma cena de algum livro lido, filme ou tela de Renoir, Van Gogh, Climt. De manhã, por exemplo, enquanto me embrulhava em camadas de roupas, punha cachecol, touca, luvas e o casaco impermeável, me sentia como a própria Anna Karenina, de Tostoy. Obviamente, sem o glamour da personagem, pois o que me esperava eram horas de estudo e não um encontro amoroso. Caminhava ritmadamente debaixo de uma chuvinha fria e constante até a estação de metrô Edmund Skytrain. Pelo caminho, ruelas entre bosques davam acesso ao Parque do bairro. Eu olhava ao longe, lá no meio da serração, onde os pinheiros entrelaçados tornavam ainda mais obscura a paisagem. Impossível não pensar que aquele bosque era o cenário perfeito para um triller de terror urbano como " Seven", de David Fincher, no qual o serial killer apareceria do nada para atacar a mocinha indefesa que escolheu caminhar por ali sem preocupação alguma. No caso, a mocinha era eu. Eu podia até ouvir o espectador dessa cena dizendo: " O que é que ela tá fazendo aí? "
Pois é, eu estava indo para a escola com a minha mochila nas costas, meu guarda - chuva, minhas luvas, meu cachecol, minha touca e capa impermeável. Tantos acessórios que, se de fato existisse um serial killer, eu não veria a sua aproximação ou sequer teria como me defender. Mas, felizmente, não havia. Era só paz e tranquilidade a caminho do Skytrain. Minha imaginação estava pulsando o tempo todo. Na estação, lá ia eu tirar o capuz do casaco, o cachecol, as luvas para pegar as moedinhas (coins )para comprar o ticket da passagem já que eu não comprei o compass no primeiro dia. O compass é o cartão que dá acesso a todos os transportes, interligando - os. Nesse momento o meu medo era que um homeless, como são chamados os moradores de rua, surgisse e roubasse meu troco como ocorreu com a minha amiga Melinda. Isso não aconteceu comigo, mas sofri o golpe do cartão. Eu peguei um usado que já estava na máquina de propósito, e o homeless pegou o novo que eu havia acabado de comprar. Eu só percebi, quando depois de ter a minha passagem travada, fui socorrida pelo próprio homeless que usou o cartão roubado para liberar a máquina.
Aliás, os homeless são um capítulo à parte nesse intercâmbio. Foi a primeira vez que vi a miséria humana na pele branca, homens e mulheres brancos mendigando pelas ruas geladas, dormindo em calçadas, buscando um pouco de calor dentro de lanchonetes até serem enxotados, guardando refil de refrigerante para ter algo doce para consumir. Poderia ser um capítulo de "Celular" de Stephen King, zumbis surgindo em cada esquina. Zumbis do crack, vindos de Downtown Eastside, a área mais frequentada por drogados, homeless e criminosos. E, claro, por onde eu não passava. A situação é tão bizarra que o governo autorizou a instalação de máquinas para distribuição de cachimbos com intuito de reduzir danos, como a proliferação da AIDS. Dentro do metrô, uma profusão de personagens. Chamam minha atenção as asiáticas que com seus olhinhos geneticamente estilizados me lembraram a ópera de Puccini, "Madame Butterfly". Como poderia o personagem Benjamin Franklin Pinkerton não se apaixonar por Cio-Cio san e sua peculiar delecadeza? O sorrisinho constante abafado vez ou outra pela mão. Era tão viável aquele amor acontecer dentro deste vagão que passei a gostar ainda mais da ópera que ganhou em verossimilhança. Mais de setenta por cento de alunos da minha escola são asiáticos como boa parte dos moradores de Vancouver, japoneses, chineses e coreanos. E eles não são iguais, mas são muito respeitosos com a figura do professor. Por isso, fui reverenciada com muitos "oh, ah" quando disse que era professora, percebi muita admiração como se eu tivesse dito que era a presidente do Brasil.
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 06/02/2018