O DESAPARECIMENTO DE MARIANÊS
Tudo começou numa manhã ensolarada de sábado, logo depois das pequenas reformas na cozinha. Um ajuste aqui e ali no vazamento causado pela última faxineira, numa dessas vinganças secretas que preferem pequenos delitos, imperceptíveis a olhos desatentos, como eram os de Marianês. Aliás, os olhos da moça não notavam o cotidiano e suas mesmices. Seus olhos, a despeito do que recomenda a prudência, preferiam morar onde pousa a poesia. Dito isso, voltemos ao sumiço dela. Naquela manhã, adentrara à cozinha como sempre fizera, pronta para pedir no balcão um croissant acompanhado de capuccino duplo com muito chantilly; esperava ouvir de volta um "voila!", pois sempre se imaginara tomando seu breakfast numa boulangerie de Paris. Mas, ainda não fora naquele dia; contentou - se com um sanduíche de pão e o restinho da manteiga importada trazida no fundo da mala de sua última viagem. Algo porém, quebrou o encanto das horas e, justamente enquando preparava seu desjejum, veio encontrar - lhe bem na ponta do nariz um cheiro acre até então desconhecido. Não se sabe o que houve a partir daí, nunca mais Marianês foi a mesma. Quando estava em casa andava a vasculhar os cantos de seus aposentos, procurando pela origem do odor como a viúva que perdera uma moeda de ouro. Suas chegadas da rua se demoravam mais e mais enquanto as partidas eram frequentes. Foi amuando - se aos poucos e já não via graça naquele apê vintage onde colecionava souvenirs de viagem. Sentava - se ao piano e tocava um clássico qualquer que lhe soava como um requien para uma vida antiga. Foi assim, bem no último acorde, que ela desapareceu. Dia após dia, sua ausência foi marcada pela ausência da música, do entre e sai dos amigos e deliveries. Silenciou - se o mensageiro dos ventos como silenciou - se também o latido do cão. Um dia veio o porteiro seguido pelo chaveiro e meia dúzia de amigos. Arrombaram a porta e ao abrir - se tudo lá estava como sempre estivera. Roupas e documentos. Objetos e a mala. Guardada. Em cima do piano flores frescas enfeitavam um vaso. Curiosos todos estavam e curiosos permaneceram. Tudo estava certo, tudo em seu lugar, exceto aquele cheiro acre pelo ar.
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 15/10/2017
Alterado em 11/02/2018
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