FINAL FELIZ II
O verão de 1820 era demasiado quente para qualquer um, em qualquer lugar, mas naquela cozinha era abrandado pela espessura das paredes de pedras que conformavam o pequeno gabinete. Havia um vapor esbranquiçado pairando sobre elas, dando-lhes um refrigério natural. Da pequena janela de vidro, cujas ladeaduras terminavam em arabescos delicadamente forjados em vitral multicolor, era possível entrever a paisagem desértica do lado de fora. O tempo havia parado. Seus olhos cerrados desconectados de suas mãos ágeis, vez ou outra, se abriam e miravam os passantes, indo e vindo de suas lonjuras, apressados pelo calor escaldante intensificado pelos caminhos de pedra e vestimentas de sobreposições, anáguas e laçarotes. A massa deslizava entre suas mãos cujos dedos finos e alongados moldavam formas variadas para depois deformar. Era bonito o contraste de sua tez escura entranhada na massa branca. Era amada. Sentia-se livre ao empreender seu ofício. Não havia mais ninguém no recinto e a solidão lhe abraçava. Gostava disso, mesmo que algo lhe dissesse lá no fundo o quanto talvez fosse egoísta. Os acordes de um instrumento de sopro desciam os degraus da saleta de música para encontrá-la esfarinhando a massa que seria cortada em tamanhos menores e menores, formando pequenos pãezinhos redondos, ovulares, estelares e florais. Ficava brincando, imaginando seres, pessoas e emoções. Recolhia os pãezinhos prontos em travessas lustrosas de manteiga, arranjando-os lado a lado, igualando-os nas diferenças que possuíam. Assim faria com as pessoas na travessa do mundo. Uma ao lado da outra, aproveitando cada pequeno espaço, onde todos teriam o seu lugar. Erguia o braço e alcançava um ramo seco de lavanda, e no ritmo da canção, dispersava as florezinhas sobre alguns dos pães que por força de seu querer teriam agora o mesmo sabor. Segurava na borda da mesa de granito negro e olhava atentamente para o trabalho em andamento, os ingredientes alocados por sabores variados. Linguiças curtidas em conhaque para rechear, frutas cristalizadas para cobrir, mel para iluminar. Às vezes, o olhar voltava para cima, onde dispunha de mais de cinquenta ramos de flores e temperos desidratados para temperar os pratos. Respirava fundo esperando que um em especial viesse oferecer-se para outra fornada. Recolheu um ramo cujos miolos acolhiam uma fruta redonda e formosa. Foi destacando-as delicadamente, arranjando-as nos pães prontos, respingados de mel silvestre. Pareceu-lhe demasiadamente agradável. O fogo estalou um sonido fino como um graveto se rompendo sob o pé; revolveu a lenha fazendo as chamas altearem, retirou a travessa de pães de ervas cujo cheiro invadiu o cômodo. Distinguia no pot-pourri as nuances mais sutis, as suavidades diluídas em azeites portugueses. E sem que se desse conta a música cessou lá em cima para vir encontrá-la embaixo. Sentiu grandes mãos firmes acariciando sua cintura esbelta. O farfalhar do tecido pressionado por outro corpo igual ao seu, negro e macio. Deixou-se envolver num abraço para além de seus próprios braços; em braços fortes feitos de puro músculo, quem sabe aço. Deixou-se beijar terna e languidamente. Encontrara, enfim, o tempero que buscava.
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 09/10/2017
Alterado em 09/10/2017