Abriu os olhos ainda úmidos por debaixo do lençol fino e viu sombras irregularidades em sua volta. Uma luminosidade esmaecida anunciava o dia nascido e criado por detrás da janela. Ficou assim, abrigada sob seus próprios braços, protegida pelo tecido fino e tensionado da coberta que se assemelhava a um útero distendido. Não queria sair dali, não queria existir. Era de si o feto crescido no ventre emprestado. Suas pálpebras pesavam imensamente como portões descerrados, era o resquício de choro. Abundante choro. Sentiu a face dolorida e inchada, pensou que ali certamente haveria um hematoma. Passou a examinar - se, apalpando toda a extensão do corpo negro  para certificar - se de que renasceria inteira. Renasceria? Soou - lhe interessante aquele primeiro pensamento ainda nas primeiras horas do dia. Renasceria inteira. Pela primeira vez na vida  sentiu - se inteira. Mesmo que durante a madrugada tenha ligado em frangalhos para o CVV, à espera de que alguém lhe desse ao menos um motivo para existir. Havia a pouco, ela o colocara porta afora. Ainda há pouco, teve que lutar para desprender - se dele. Ele que fora a sua razão de existir. Ele que sempre ditou as regras. Ele que fazia dela o que bem entendesse, alternando fúria e paixão. Ele, seu vício declarado. Ele que a humilhava em continua comparação com outras tantas por aí. E ela, sempre  subalterna e  submissa, aceitara os desígnios do malamar. Mas, sabe -  se lá o porquê tomou coragem para seguir, dessa vez sem ele. Abandonou o barco. Melhor dizendo, chutou - lhe do barco tomando o leme de sua vida para si. Navegava agora sozinha como nunca esteve; como se devesse. Devesse não! Como se quisesse. Queria! Porque querer é melhor que dever. Querer é escolha e escolha é poder. Ela tinha poder! E num movimento doído, tirou do tecido um talho e pôs a cara para fora ainda de olhos fechados. E rasgando mais e mais, fez nascer braços, peito, quadris, pernas e pés. Abrindo os olhos  pariu a si mesma.