Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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ESTADO DE GRAÇA
Passei o dia em casa estudando. Nenhuma novidade. Esse é o meu refúgio de todos os dias, todas as horas. Onde me distraio com miudezas desimportantes como cuidar das minhas plantas, afagar meu cão e ver se ele continua vivo. E, se estiver, afago um pouco mais para que ele se levante e venha dar uma volta pela casa e, quem sabe, se ele quiser, passe embaixo da minha cadeira e então eu faço outro afago nele. Então, ele volta de novo e outra vez, daquele jeito, andando devagar e de cabeça baixa. Vez ou outra, ele para perto da tomada do abajur e fica lá parado e eu fico pensando “o que será que ele pensa?” “Ele pensa”? Vou e volto de um lugar para outro. Cozinho, escrevo, leio, limpo, desenho, faço a lista de compras, rezo, dou-lhe água e comida, troco-lhe a fralda. Ele anda mais um pouquinho, para na janela e fica sentindo o ar lá de fora, dá meia volta e dorme. Profundamente. Eu escrevo, estudo, leio, arrumo aqui e ali, olho o sono dele, durmo também. A vida é isso; ocupar-se de obrigações, deveres, afazeres e haveres que serão chamados Hobbies. Pensar também. Gosto muito de pensar e de dar sentido a um comportamento, analisar uma palavra, comparar palavras e ações, separar as coisas como separo as roupas que vou guardar ou colocar para lavar. Há uma segunda opção de vida, aquela em que você não se ocupa e começa a achar que a sua vida é vazia porque não há nada para fazer. Nessa opção, você começa a imaginar a minha vida e fantasia na sua cabeça que vida boa é a minha que vou para lá e para cá como bem quero, sem dar satisfação para ninguém. Então, você começa a se entristecer porque a sua vidinha é bem ridícula. Concordo. A vida é invenção, se você cruzar os braços assim permanecerá. E fará uma vida ridícula. A minha vida também é ridícula, mas tem sempre um “mas”, eu sou muito inventiva e já estou inventando os próximos dias e meses e anos da minha vida em que ela será um pouco menos ridícula. Respondi uma lista enorme de exercícios, mal comi, mal dormi e fui para última aula antes da prova. Enquanto fazia os exercícios e tomava banho e dirigia até a escola, fiquei encantada comigo mesma, com a forma como me dedico aos meus projetos. “Senti um acréscimo de estima por mim mesma, e parecia-me que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!” Entre aspas porque quisera eu produzir tal frase, mas não fui. Foi Eça; Eça de Queiroz, em O Primo Basílio. Mas, foi assim que me senti. Cheia de autossatisfação. E bem no momento do meu êxtase, escuto uma buzina replicante, olho para o lado e vejo vociferar um rosto de homem transtornado. Antes que eu pudesse lhe compreender, ele empreendeu fuga, mal deu para ver o adesivo de um movimento religioso de grande expressividade na cidade. O adesivo dizia que ele tinha ido. Esse foi o start necessário para que eu começasse as minhas digressões. Comecei a pensar que o problema é que as pessoas não retêm o Sagrado. Elas repetem as palavras feito papagaio ignóbil. Dizem aos quatro ventos frases de efeito. Seguem religiões, seitas, filosofias, sabedorias, mas não se alicerçam delas. Então, basta ver um “serumaninho” em êxtase consigo mesmo que quer logo desboar quem está deboas. Mas, ele não conseguiu nada, pelo contrário, me fez lembrar que eu não preciso mais correr. Eba! Posso ir e vir do trabalho tranquila. Posso dormir depois do almoço. Posso ir estudar o que eu quiser porque eu não preciso provar mais nada para ninguém. Posso fazer meu almoço saudável e comer devagar. Posso ficar à noite vendo TV, mas eu prefiro ler e escrever, ou seja, ainda tenho bom gosto. Posso ir ao cinema depois da aula. E foi o que fiz, fui ao cinema e lá encontrei um ex-aluno e o ouvi dizer: “Deus é bom! Pedi para te encontrar e ele me mandou você!” E nós nos sentamos lado a lado e assistimos Moonligth comendo pipoca doce. E como se não bastasse, o filme é lindo e fala de amor com uma sensibilidade difícil de encontrar hoje em dia. Lá pelas tantas, estávamos para chorar quando descobrimos que ganhamos o Oscar! Não é que uma das cenas mais lindas do filme tem a voz do Caetano Veloso cantando “Cucurrucucu Paloma”, a mesma música que ele canta em Hable com Ella, o filme do Almodóvar. A lágrima que ia cair ficou presa na garganta, nós nos olhamos e vibramos. Parecia que entrávamos em um inexorável estado de graça.  

Adelaide de Paula Santos em 03/03/2017, às 02:04.

P.S.: Tive que refazer o texto original porque foram tantas coisas lindas que não quero esquecer. Além do presente de ouvir o Caetano, o filme ainda traz artistas negros maravilhosos que amo como a Janelle Monàe  que também está no Estrelas além do tempo; tem o mulçumano Mahershala Ali  e rapper Trevante Rhodes que faz o protagonista adulto. Amei!                  
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 02/03/2017
Alterado em 03/03/2017
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