Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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O OUTRO LADO
Chamaram-no “macaco”. Mandaram-no para o outro lado. O lado que já não era o de lá porque o lado de lá já estava desapropriado. Mandaram-no para o lado que fica depois do lago, onde o céu termina, depois das nuvens, onde a cidade acaba. Aquele que não chamam de Lândia, mas invasão, favela, onde entram e saem carros e motos; levando, trazendo objetos e produtos que ninguém ali tem dinheiro para pagar. Disseram que ali, sim, era o lugar dele. Deixaram-no sem emprego, sem comida, sem abrigo, sem função social. Deram-no uma razão para matar ou morrer. Fizeram-no pela cor “traficante” enquanto aquele “loirinho”, que espera sua parte no carregamento de pó e baseado, será chamado de “usuário”.  Ambos serão punidos pela justiça. O primeiro pagará com a vida e o segundo com cestas básicas.  
Chamaram-no “bicha”. Mandaram-no para o outro lado. Mandaram-no para a esquina, na ponta de uma asa não tão distante, aquela onde não há mais casas, onde existem pequenos prédios, com pequenas suítes, puxadinhos providenciais nas sobrelojas comerciais. Disseram que ali, sim, ele podia se virar. Tiraram-no do salão do shopping, do seio da tradicional família cristã, acusaram-no de ser vergonha social. Abominação da natureza. Impureza bestial. Cortaram-lhe o rosto na Avenida Paulista com lâmpadas fluorescentes. Lançaram luz sobre a sua imundície. “Podia se curar, mas não quer”. Agora, sim, ele pode exercer sua promiscuidade dentro do carro importado com aquele político engravatado, empresário bonito e formado, pai de família adorado, funcionário público, cargo de confiança ou soldado. Inclusive, quem diria, o pai do loirinho aquele que busca na favela o alívio para curar sua azia. E assim, o dinheiro põe cada um no seu quadrado. Entre o viado e o gay, o infortúnio e o bem acumulado.
Chamaram-na “mulherzinha”. Mandaram-na para o outro lado. Seu lugar era o lar doce lar e ela acreditou e achou esse tal de lar o lugar perfeito para ser. Ela largou as bonecas para se dedicar ao seu homem. Mesmo sendo ele bem mais velho, lhe parecia assim muito especial, afinal, como a mãe dizia, ela tinha o troféu que tantas desejavam. Sua saia desceu até o chão, o decote virou uma gola, os cabelos ao vento nunca mais; uma trança lhe caía melhor. “Um rosto lavado é mais natural”, sussurrava-lhe ao ouvido aquele bafo de bebida. Logo seus “dez...” se foram, mas deixaram-lhe a casa cheia de filhos. Olhava-se no espelho e não se via; o que via eram marcas, rugas, cicatrizes, feridas abertas pelas mãos daquele que agora só via dia sim, dias não.
E o tempo passou como tem que passar, os dias se sucederam levando com eles as noites, trazendo as madrugadas e dias novos. E nesses caminhos e descaminhos, vidas se encontram e se perdem. Foi assim que a “mulherzinha” fugiu do lar e foi morar num puxadinho da favela. Espalhou os filhos por aí e o juizado tratou de juntar. Lá, conheceu um tal de “macaco” que adotou o xingamento como alcunha, depois de ser convencido pela juíza que assinou seu alvará de soltura que “o que importa é o que a gente é, não o que dizem de nós”. Sempre se apresentava dizendo o nome e completando com a observação – “também conhecido como o macaco mais que civilizado”. Aquilo lhe parecia importante dizer, mesmo que por dentro algo o entristecesse. Macaco e mulherzinha trabalhavam num condomínio de Águas Claras, ela trabalhava como diarista e ele como motorista da mesma juíza que o tirou da prisão, mesmo a contragosto da família dela. Não havia mais tensão em suas vidas, a não ser aquela que explodia na cobertura daquele político sempre que “loirinho” tentava descolar uma grana extra de seu pai. A juíza era avó de loirinho e, enternecida pela idade avançada e pela fragilidade de sua saúde, sempre intervinha em favor do neto. Mas, “aquilo não prestava” - pensava o motorista. Certo dia, Loirinho surtou. Sem mesada para buscar o alívio que precisava, decidiu acertar as contas com o pai, resolveu chantageá-lo. O pai não sabia que o filho sabia que o pai gostava de uma “bicha”, uma muito cara e bonita. Uma que ele tirou da Asa Norte e deu vida boa lá em Goiânia. Aquela que fez tantas plásticas que nem a própria mãe reconheceria. E foi num desses finais de semana, em que o pai escapava para os braços da amante, que loirinho resolveu invadir a cobertura. Atrás dele os seguranças assoberbados, os empregados aflitos, os vizinhos curiosos, a juíza desfalecendo pelo neto, o motorista socorrendo a juíza, a faxineira temendo que sobrasse algo para seu companheiro. Ninguém conseguiu chegar a tempo de impedir que loirinho rendesse o pai que falava ao telefone com a amante e só percebeu o que estava acontecendo quando viu o motorista em luta corporal com seu filho que a essa altura já havia atingido o pai com dois tiros. Mas, antes de dar o último suspiro, o pai ainda sacou de sua pistola e, mesmo agonizando, atingiu o filho com um tiro mortal. Ao ver a cena, a juíza desfaleceu para nunca mais acordar. No dia seguinte, a manchete do Correio Braziliense esclarecia o crime:
“Tragédia na corte: travesti trama assalto na cobertura de político com a ajuda de ex-presidiário e faxineira.
Dizem que há o outro lado da história, mas esse até agora ninguém contou”.  
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27/01/2017 - Madrugada fresca - Inspirada pelas canções de Elza Soares dos CD's  "A mulher do fim do mundo" e
                        "Do Cóccix Até o Pescoço"
P.S: Eu não consigo me relacionar com pessoas machistas, racistas, misógenas, homofóbicas...preconceituosas em geral. Talvez, por isso, tá cada vez mais difícil ter 1 milhão de amigos; e quem precisa, né?; Não dá pra compactuar com esses comportamentos só pra ter um suposto amor.
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 27/01/2017
Alterado em 27/01/2017
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