Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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CÃO VELHO E CÃO NOVO
O cão novo veio passar uns dias em casa, ouço os saltitos pelo caminho como se fosse um minúsculo cavalinho fazendo acrobacias. Lembro-me imediatamente do cão velho, quando ainda era filhote e vivia mordiscando as coisas e as gentes, como esse também faz agora.
Os olhinhos do cão novo parecem suplicantes, aflitos por um chamego, um carinho. Carentes de proteção e cuidado. O cão velho já não enxerga mais...meneia a cabeça de um lado para outro, vagueia pelo espaço, meio cambaleante. Não vai para onde quer, apenas vai. Permite-se tocar, como se concedesse a despedida do tato. Logo, logo, não teremos seu dorso ferido para acariciar. O pelo falhado, a pele repleta de caroços de tantas batalhas, de tantas navalhas, das idas e vindas de um tempo indócil. O cão novo espalha suas coisas pela casa, o pelo brilhante e nutrido. O latido agudo e frequente desafia sons estranhos que chegam por baixo da porta. O cão velho já não late. O silêncio que me aflige, também dele se apossou. Não há mais pelo que lutar, as batalhas diárias, agora, são todas vencidas, inúteis lembranças de um tempo perdido. Cabisbaixo, ele fareja algo, sempre o focinho derreado, como se derrotado. "O tempo sempre cuida de nos pôr no prumo certo". O cão novo peleja com uma bola, fazendo-a rodopiar pelos ares e isso lhe parece interessante. Concentra-se no jogo e este será o objetivo a perseguir até que outro apareça e assim sucessivamente até que a vida tenha passado, até que nada mais reste, além de um sentimento de inadequação. O cão velho arrasta heroicamente os dias que seguem modorrentos e inócuos; vez ou outra, descobre uma sutil felicidade que o faz acelerar o passo, ensaiar uma corridinha. Uma visão sobrenatural, quem sabe? O aceno de uma senhora muito alegre e gentil? Um desejo inconfessável de voltar aos braços que o alimentou longa data? Logo, a chama se apaga e se esfuma a poesia de um segundo de paz e aconchego. "Sinto falta de minha mãe". O cão novo enrosca-se, encolhe-se e dorme. Cansado das estripulias da infância, dorme o sono dos inocentes. Às vezes, chora enquanto dorme ou dá pequenos latidos, parece que sonha. Revive em sonho o passado recente, recarrega as forças para as próximas aventuras: correr pela casa, morder um chinelo, latir para estranhos, pular no sofá. O cão velho dorme um sono pesado. O sono entrecortado de um peito aflito, ancião a sofrer. Sôfrega a respiração, mal oxigena a mente, agora, já tão demente. Ao dormir, dorme-se os medos e expectativas. No sono, não há mais o que temer. Para ele sim; não para mim, que temo mais uma partida sem despedida.
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 10/07/2016
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