Amor no haras
O tédio lançara teias sobre o seu casamento. E apesar disso ser sabedora, ela nada decidira além de delimitar a distancia entre os dois no leito conjugal. Não menos de um metro era o limite que suportava estar daquele que um dia desejara. Não via mais atrativos nele, tudo a aborrecia. Seu corpo demasiado exíguo, o cabelo curto demais, o odor de lavanda que exalava.
Ele por sua vez, mesmo a desejando, foi-se minguando qual lua decrescente. Encolhia-se no pedaço que lhe cabia da cama. Por vezes, até mais que as regras não escritas estabeleciam. Perto dela, sentia-se um estorvo. Tornou-se amuado e quase passava despercebido, não fosse a estatura grandiloquente, inversamente proporcional à sua autoestima.
Foi então que ela resolveu torna-se discípula do Hipismo. Frequentava um haras perto da fazenda onde viviam. Em pouco tempo, já cavalgava divinamente. Fronte erguida, corpo esguio sob o dorso dourado de um manga larga marchador. Sentia-se, a cada amanhecer, mais sedutora. Furtava do cavalo a elegância que nunca tivera.
Ele, resignado ao destino que ela lhe reservara, decidiu-se por laborar na lavoura com as próprias mãos. Dispensou os empregados, encostou os artifícios. Labutava dia e noite no cercado. Lançava as sementes no arado. Preparava a adubação adequada para cada cultivo. Perseguia as pragas que ameaçavam as tenras mudas. Acompanhava o crescimento dos frutos como um pai cuida dos filhos. Colhia-os no tempo certo, fosse noite, fosse dia. Na hora exata estava lá para recolhê-los do pé. Largava à noitinha, pouco antes dela retornar da equitação.
O corpo dela, moído pelo sacolejar das intermináveis cavalgadas, não permitia maiores mesuras. Comia. Banhava-se. Dormia. Levantava junto com o primeiro raio de sol, colocava a roupa de montaria e seguia para o haras. Com o tempo, nem se dava conta dele. Deixava-o dormindo e dormindo o recebia à noite.
Ele foi-se metamorfoseando a olhos vistos. Os cabelos cresceram e alcançaram as espáduas, a barba por fazer, cobriu-lhe a face. O corpo avolumou-se com os músculos que brotavam sob a pele. Tornara-se irreconhecível. E, enquanto perdia a identidade de uma vida inteira, ganhavam fama no vilarejo os produtos que vendia. Diziam por aquelas bandas que não havia frutos mais saborosos, verduras mais tenras, legumes mais nutritivos. De todos os lugares vinham compradores negociar a sua exclusiva produção. E assim, esquecia-se dela por tanto cuidar em não esquecê-la.
Um dia, chegou ao haras um cavalo novo. Selvagem. Um puro sangue árabe.
Quando ela depôs o olhar sobre ele, apaixonou-se. Ele era, simplesmente, a coisa mais preciosa que seus olhos alcançaram em vida. Quis montá-lo, como também o quiseram todos os que freqüentavam o haras. Mas não havia quem o domasse. Altivo. Bravo. Impossível. Ele ficou solto pelo pasto. Cabeça erguida e crina ao vento. Relinchava alto, o que fazia os outros machos levantarem as orelhas. Bufava, sempre que alguém se aproximava do cercado. E para acalmá-lo, vinham duas ou três éguas cercá-lo. Ele não se fazia de rogado, cobria-as ali mesmo, diante da plateia, da qual ela fazia parte. Aquela cena a excitava por demais. Passou a desejá-lo e ele também. Pensava ela com seus botões entreabertos.
Em casa, ele se tornava mais seguro, já não se importava com o que ela sentia ou julgava. Tomava um banho rápido, ali mesmo no curral, enquanto limpava o bebedouro dos animais. Jogava-se na cama exausto, desrespeitando os limites por ela estabelecidos. Roncava alto enquanto dormia pesado. E isso, em nada lembrava as noites em claro que passara, na tentativa de encontrar uma posição que evitasse os ruídos corporais.
Na cama, ela pensava no puro sangue. Revirava-se, insone. Levantava suada e não lhe restava outra coisa que tomar um banho frio. Voltava para a cama e tornava a contorcer-se. Vez ou outra, tocava o corpo dele. Parecia-lhe que a cama diminuíra. Sentia a rigidez daquele corpo, sentia-o estranhamente. Tocava-o de leve, como a certificar-se de que não estava dormindo com um estranho. E o estranho era, que mesmo com as luzes acesas, não conseguia ver o rosto dele, recoberto pela barba densa. Passou a imaginar coisas.
Cuidadosamente, ele lavava as tetas da vaca para colher o primeiro leite da manhã. Enquanto isso, pensava nela. E pensava que não haveria mais limites em sua cama, dormiria onde quisesse e como quisesse. Ela que procurasse se acomodar no espaço que sobrasse.
Como não podia cavalgar o puro sangue, ela passava horas tentando aspirar o odor que dele exalava. Aquele cheiro entrou em sua memória olfativa, conseguia recuperá-lo onde estivesse. E, à noite, tocava-se amiúde e recuperava a presença do cavalo. Acordava quase plena, quase, pois lhe faltava algo, mas não sabia, exatamente, o quê.
E aconteceu um dia que ao revirar-se na cama ele se pôs sobre ela. Aquele corpo pesado sobre aquele corpo frágil. E ela despertou do sono em que estivera até então, o cheiro do puro sangue lhe invadindo as narinas. E seguindo os instintos que o tornavam o macho alfa, ele a possuiu de todas as formas possíveis à imaginação mais voluptuosa. E ela o cavalgou por toda a manhã e nesse dia não houve feira, nem aula. Apenas um cavalo árabe pastando, sossegadamente, pastagens estrangeiras.
16/01/2012
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 16/01/2012
Alterado em 07/07/2014