Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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Mãe como a minha, não existe.
   Minha mãe não vai ler isso certamente. Ela nunca perde tempo com esse tipo de coisa, aliás, ela não sabe o que é blog, site, Orkut e afins. Minha mãe não curte muito essas tecnologias. Minto: outro dia, me vendo escrever no laptop, ela disse que queria ter um lap também para ficar escrevendo sem parar como eu. Depois riu, desdenhando de mim. E sabe que ela tem razão, no mundo dela esses “suportes” não têm a menor importância.
    Nesse exato momento, minha mãe está na praia, de férias. E feliz de quem está com ela agora. Por quê? Simples. Minha mãe é uma mãe daquelas antigas. Não, ela não é uma velha, não. Ela é a típica mulher virtuosa, aquela que acorda cedo e dá provimento a casa. Aquela que faz o dia amanhecer.
    Lembro-me de vários amanheceres na casa de minha mãe. Seus pequenos movimentos, cuidadosos para não nos acordar. O correr da água na pia, lavando a louça. O tilintar dos vidros, da louça dos pratos, dos copos, das tigelas sendo preparadas para o almoço. O cheirinho gostoso do café escorrendo pelo coador de pano. O estilhar das cascas dos ovos, utilizados no preparo das panquecas. Aliás, foi por isso que me lembrei de minha mãe hoje.  Quando quebrei os ovos para fazer as minhas panquecas, que muitos conhecem como wraps ou crepes. Eu prefiro chamar de panqueca; é mais divertido com certeza.
     Além das panquecas, minha mãe também faz um cuzcuz delicioso. O prato predileto dos netos de D. Alaíde. Na minha infância, a expectativa de acordar continha sempre um desejo gastronômico: o que será que minha mãe havia providenciado para o café da manhã? Meu pai também era formidável nesse quesito. Até a sua partida em 97, era ele que preparava o café todas as manhãs; e aos domingos sempre trazia da feira uma coisa gostosa: beijú, pastel, um negócio que eu não sei o nome, enrolado numa palha. Eles formavam um casal perfeito.
     Eu aprendi com ela a fazer várias coisas ao mesmo tempo: preparar o café, lavar a louça, colocar roupas de molho, adiantar o almoço, limpar a casa, ouvir música e cantar. É. Mãe de muitos filhos, não dava para perder tempo não.          
     Lembro-me dela voltando do mercadinho com sua sacola de compras. E na minha ignorância, sentia vergonha de ver meus pais (meu pai também usava) carregando aquela sacola de nylon. Hoje sei que eles foram precursores da tal consciência ecológica que tanto falamos hoje. Aliás, eu adotei vários hábitos de minha mãe que são hoje recomendações de bem viver. Hoje eu tenho as minhas sacolas de feira.
     Esse negócio de encher a geladeira de coisas, o freezer de carnes, peixes e aves de não se sabe quando, nunca foi de uso lá em casa. Outro acerto de meus pais que hoje é ensinado pelos gurus da boa alimentação.
    O ritual de toda manhã era ir ao açougue para comprar a “mistura” sempre fresca. Carne, peixe, fígado, miúdos. Outro dia mesmo, a ouvi dizer: “Já descobri o dia em que a carne chega fresquinha, já combinei de ir lá pegar. De velha basta eu.” Caímos na gargalhada. Verdura, legumes, farinha, temperos? Só na feira ou no fornecedor que passa de porta em porta. Ou seja, direto do produtor, fresquinha e sem agrotóxico. Antes tínhamos horta, árvores frutíferas, galinhas, ovos caipiras espalhados pelo quintal. Depois que crescemos, o quintal foi se modificando, o cinza do cimento foi tomando o verde. Mas, as lembranças ficaram. Agora sou eu que rego a minha tímida horta na janela do apartamento.
    Sempre comemos muito peixe, assado e ao molho. Moquecas deliciosas, feitas em minutos. Eu ainda não dominei as técnicas de minha mãe no preparo express de pratos saborosos. Aquele jeito de “chef di cuisine”, de jogar os ingredientes na panela, sem medidas ou cálculos e, durante o preparo, dar providência a outras necessidades. De repente, entre um conversa e outra, despretensiosamente, sentir o cheirinho da comidinha pronta. É isso que ela deve estar fazendo agora, uma moqueca básica, de peixe fresco.
    Os peixes e as carnes, fomos conhecendo de ouvir falar, de ver, sentir, preparar e de provar. As conversas na nossa casa sempre continham um toque culinário. Surubim, pescada, cação, namorado, cheiro verde, cebola, pimentão, leite de coco, azeite de dendê. Galo (meu pai adorava preparar um), galinha, cabrito, cominho, salsão, pimenta do reino, limão. Todos nós participávamos do preparo das comidas. Os adultos matavam, limpavam, temperavam. As crianças separavam os pedaços dos cortes, os temperos, lavavam alguma loucinha, pegavam isso e aquilo que os adultos pediam. Ninguém reclamava, nem achava chato ficar na cozinha ajudando os pais.
     Tudo era motivo para brincar. De vez em quando, minha mãe fazia um fogareiro com grandes pedras e nos dava alguns ingredientes para brincarmos de fazer comidinha nas panelas menores. Arroz, batatinhas, feijão, vagem tudo picadinho ou pré-cozido. Riscávamos o chão com pedaço de tijolo e fazíamos a casa; sala, quarto, cozinha, banheiro. Cômodos ricamente decorados com banquinhos, forrinhos de tricô e jarrinhos com flores. Tudo reciclado: garrafas viravam jarros, pneus viravam estofados modernos, as plantas eram as da minha mãe mesmo, os forrinhos também. Minha mãe costurava, bordava, fazia crochê e tricô.
    Era e é uma lady. Bem que ela tentou nos ensinar, mas os tempos eram outros e tínhamos outras aprendizagens a fazer. Ainda hoje sinto não ter aprendido essas artes manuais, mas sei que meu bom gosto e percepção de espaço e utilidade das coisas vêm dos meus pais.
    Nós não conhecíamos shopping, parques, museus, teatros. Aliás, pouco saíamos de casa. Brincávamos em casa ou bem pertinho.  Nossos amigos éramos nós mesmos e os filhos dos amigos de nossos pais. Todo mundo se conhecia. Se chuvia, brincávamos de correr na chuva, fazíamos barquinhos de papel para colocar na enxurrada. Se fazia sol, brincávamos de futebol, vôlei, bete, carrinhos de rolemã, garrafão, peteca, elástico, amarelinha, pique-pega, finca, biloca, polícia e ladrão. Vivíamos cheios de marcas dos tombos, das quedas. Sem falar nas roupas sujas e nos freqüentes resfriados. Mas, minha mãe nunca nos impedia de fazer o que era bom para nós.
    Acho que a suas preces nos livraram de muita coisa ruim. Músicas religiosas, missas, a oração do terço, novenas. Tudo o que é sagrado sempre fez parte do universo da minha mãe. Mas ela nunca foi carola, não.
   Baixo astral? Não é com ela. Vive ouvindo música boa; gosta de samba-canção, boleros, curte Roberto Carlos e de vez em quando solta a voz. Quando éramos crianças ela cantava a plenos pulmões músicas lindíssimas dos cantores de sua época. Foi assim que eu conheci o Cartola, o Noite Ilustrada, Lupicínio Rodrigues, Elizete Cardoso, Ângela Maria, Nelson Gonçalves e tantos outros. Meu pai fazia coro.
    Os dois também nos faziam rir com suas caretas e palhaçadas espontâneas e autênticas. Ninguém copiava ninguém; quando no muito um tal de Mazaroppi que só muito tempo depois descobri quem era. Era nas noites sem energia, que sempre faltava naquela época, que mais nos divertíamos. As velas espalhadas pela casa criavam o cenário perfeito para o teatro acontecer. Teatro de sombra, imitações, histórias folclóricas, histórias de terror, trava-língua, repente.
     É. De repente, me deu uma saudade da minha mãe...  

Texto registrado na Biblioteca Nacional, seção de Direitos Autorais      
              
        
Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 30/11/2011
Alterado em 30/11/2011
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